Por: Lucas Ferrante*
A recente decisão da 6ª Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1) de manter a suspensão da licença prévia para as obras no trecho do meio da rodovia BR-319 é uma vitória da ciência, da legalidade e da vida. A decisão atende a um recurso do Observatório do Clima, revertendo a liminar equivocada concedida em 2024 pelo desembargador Flávio Jardim, que havia acolhido o pedido da União, do Ibama e do Dnit, com argumentos que careciam de base técnica e contrariavam evidências científicas revisadas pelos pares e jurídicas já amplamente divulgadas.
Um dos principais equívocos da decisão do desembargador Jardim foi alegar que a pavimentação da rodovia BR-319 seria essencial para evitar futuras crises como a da falta de oxigênio enfrentada em Manaus durante a pandemia de Covid-19. Contudo, essa justificativa foi amplamente desmentida em estudo coordenado por mim e publicado no Journal of Racial and Ethnic Health Disparities, no qual demonstramos que a escolha da BR-319 para o transporte de oxigênio foi não apenas a mais cara, como também a mais lenta e ineficiente. O trajeto ideal, via fluvial pelo rio Madeira, teria sido mais rápido e seguro, além de não agravar a degradação ambiental e os riscos de saúde pública associados ao avanço da rodovia.

A liberação da licença pelo Ibama em 2022, ainda durante o governo Bolsonaro, já representava uma ruptura com os princípios de precaução e avaliação adequada dos impactos socioambientais. Como demonstrado em artigo publicado na The Lancet Planetary Health, a pavimentação da BR-319 expõe um dos mais importantes blocos de floresta contínua da Amazônia ao desmatamento descontrolado, à grilagem e à exploração ilegal de recursos naturais. Projeções conservadoras indicam um aumento de até 1200% no desmatamento caso a rodovia seja pavimentada, colocando em risco não apenas a biodiversidade, mas a própria saúde humana, com o aumento de zoonoses e doenças infecciosas, como a malária, que já aumentou em 400% na região desde a aplicação da licença de manutenção da rodovia, concedida em 2015.
De forma alarmante, a negligência ambiental associada ao projeto contribuiu diretamente para a emergência de uma nova linhagem do vírus Oropouche, causador de surtos massivos em 2023 e 2024, conforme publicado na Nature Medicine. Essa nova variante do vírus, resultado de eventos de rearranjo genético, se espalhou rapidamente por áreas de alta degradação ambiental, como a zona AMACRO (Amazonas, Acre e Rondônia), justamente onde a BR-319 avança sem o devido controle. As evidências apontam que o aumento da conectividade entre áreas florestais preservadas e centros urbanos — promovida pela abertura de estradas — cria corredores epidemiológicos para novos patógenos, elevando exponencialmente o risco de futuras pandemias.

Além do risco sanitário, a manutenção da BR-319 como projeto prioritário do governo tem servido como catalisador para grilagem de terras e pressões sobre povos indígenas e populações tradicionais. Como alertamos na revista Land Use Policy, a taxa de grilagem na área de influência da BR-319 é três vezes superior à média da Amazônia. A decisão judicial que agora suspende a licença é, portanto, não apenas legítima, mas urgente para conter um processo acelerado de devastação que ameaça diretamente os compromissos internacionais do Brasil em relação ao clima e à proteção dos direitos indígenas.
A suspensão da licença também evidencia que não é possível promover infraestrutura na Amazônia sem observar os princípios constitucionais do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e da consulta prévia, livre e informada, garantida pela Convenção 169 da OIT. A tentativa de acelerar a pavimentação do trecho do meio da BR-319 desrespeita a exigência legal de estudos complementares de impacto ambiental e de participação efetiva das populações afetadas, conforme apontado em pareceres técnicos e decisões judiciais anteriores.
A decisão anterior que tentava viabilizar a BR-319 partiu do mesmo desembargador Flávio Jardim, que recentemente também deu aval à empresa Potássio do Brasil para considerar válida uma consulta que ignorou completamente a comunidade indígena do Lago do Soares, no território Mura. Essa decisão desconsidera evidências robustas, como um estudo etnográfico publicado há mais de 100 anos na prestigiada revista L’Anthropologie, que reconhece toda a área do lago como parte do território tradicional Mura. Trata-se de mais um episódio preocupante em que decisões judiciais flexibilizam garantias constitucionais e ignoram o direito dos povos indígenas à consulta prévia, livre e informada.
Por fim, é preciso reiterar que soluções simplistas e politicamente motivadas, como a alegação de que a BR-319 seria uma via estratégica para o abastecimento em crises futuras, não apenas são falsas como desviam o foco das reais necessidades da região. O fortalecimento da infraestrutura de saúde, da vigilância epidemiológica e do transporte fluvial sustentável deve ser o caminho prioritário para garantir resiliência social e ambiental na Amazônia. A decisão da Justiça Federal é, portanto, um passo essencial para frear a escalada de riscos socioambientais na Amazônia. Cabe agora ao governo federal respeitar essa decisão, rever sua estratégia de desenvolvimento para a região e incluir, de fato, os povos da floresta e a ciência no centro das decisões. É a única maneira de evitar que novas tragédias se repitam — sanitárias, ambientais ou humanas.