Rodovia é pavimentada em seus extremos, mas segue sem manutenção no chamado “Trecho do Meio”, que vai do km 250 ao km 655. Obra foi construída no período da Ditadura Militar e funcionou até o final da década de 1980 . Na imagem acima, um vaqueiro no distrito de Realidade (AM) (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real/2023).
Manaus (AM) – Mesmo sem consulta aos indígenas afetados, o Ministério dos Transportes divulgou na semana passada um relatório produzido por seus técnicos informando a “viabilidade socioambiental da BR-319 com condicionantes a serem cumpridas para obtenção da Licença de Instalação e de Operação para a obra de pavimentação da rodovia”.
A BR-319 liga Porto Velho (RO) a Manaus (AM) e atravessa várias unidades de conservação e impacta diretamente ao menos cinco terras indígenas. O relatório foi produzido entre 17 de novembro de 2023 e 29 de fevereiro de 2024.
As terras indígenas diretamente afetadas pela obra são: TI Apurinã do Igarapé São João e Apurinã do Igarapé Tauamirim, do povo Apurinã; TI Lago Capanã e TI Ariramba, do povo Mura; e TI Nove de Janeiro, do povo Parintintin.
O licenciamento ambiental para áreas federais é concedido pelo Ibama, que deve agora avaliar o relatório. Já visando acordos com o Ministério dos Povos Indígenas e com a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), o relatório do Ministério dos Transportes diz que a metodologia será de “escuta”, quando os órgãos apresentarão termo de referência “para incluir áreas complementares nos estudos exigidos no âmbito da Licença Prévia e futuras condicionantes”.
Indígenas ouvidos pela Amazônia Real negam que as reuniões promovidas pelo Ministério dos Trabalhos e pelo Departamento Nacional de Infraestrutura e Transportes (DNIT) tenham feito consultas em seus territórios. Nilcélio Jiahui, coordenador executivo da Organização dos Povos Indígenas do Alto Madeira (OPIAM), disse que não houve discussão com os povos afetados pelo empreendimento.
“Vamos continuar lutando para que essas consultas saiam e que a gente tenha também o direito de exercer [o sim ou não] para a pavimentação. Porque essa pavimentação prejudica muito os territórios indígenas”, disse o líder indígena do sul do Amazonas, em declaração à Amazônia Real.
Ele afirmou que a diálogo com os órgãos do governo federal não está descartado, mas que ele precisa ser de acordo com os critérios da Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), tratado internacional do qual o Brasil faz parte.
“Nós exigimos o respeito à consulta livre, prévia e informada. Não vamos aceitar atropelos. Vamos encaminhar mais uma vez uma denúncia ao Ministério Público porque os povos indígenas afetados não estão sendo consultados, não está tendo diálogo com esses povos. Então a gente vai continuar fazendo o que é de nosso direito, que é denunciar esses fatos para as autoridades competentes para que tome as devidas providências”, afirmou Nilcélio.
Nesta semana, poucos dias depois da divulgação do relatório do Ministério dos Transportes, lideranças indígenas estiveram em Manaus, onde participaram de audiências no Ministério Público Federal. Eles contestaram a versão do documento do governo federal. Alguns deles falaram com a Amazônia Real sob anonimato, pois sentem-se ameaçados devido à oposição à obra.
Uma dessas lideranças é do povo Mura, do Lago do Capanã. Ele se posiciona contra a rodovia, por conta de invasões que estão acontecendo em seu território. “Se sem a pavimentação já está acontecendo isso, imagina se pavimentar. Por isso nós somos contra”, desabafou.
Para o indígena, a estrada não os favorece em nada. Apenas mais vai aumentar o desmatamento. “[se pavimentar a estrada] o desmatamento vai ser infinito. Perdemos 14 castanhais de onde nossos parentes tiravam o sustento deles. Estamos sofrendo ameaças de grileiros. O povo Mura está de luto pelo que está acontecendo na floresta amazônica e principalmente dentro de seu território”, denuncia.
Uma das lideranças dos Apurinã, do município de Tapauá, também falou sobre o rastro de destruição que a repavimentação da estrada deve trazer. “Se a pavimentação fosse só para a reforma da estrada seria muito bom, mas vai trazer muitas pessoas, os grileiros e com eles a derrubada de árvores e tudo isso afeta os povos indígenas, porque eles acabam com a floresta”, ressalta.
O líder ressalta que, para os Apurinã, a floresta é um organismo vivo. “A Terra é viva. A floresta é viva. Precisamos do ar. É impossível dizer que isso [a pavimentação da estrada] vai ser boa para nós”, lamenta.
A liderança cobrou que seja feita a consulta aos povos indígenas como prevê a lei. “Nós, povos indígenas, precisamos ser consultados. Ninguém tem que decidir por nós”, finalizou.
A coordenadora executiva da Articulação das Organizações e Povos Indígenas do Amazonas (Apiam), Mariazinha Baré, aponta que o relatório produzido pelo GT do Ministério dos Transportes não é claro quanto aos impactos que a estrada já causou e os impactos que ela vem causando e do que ela ainda pode causar.
“Não fala sobre os próprios planos de mitigação em relação ao aumento do desmatamento, de queimadas, aumento de grilagem. Não menciona sobre este trecho [Trecho do Meio] e em toda a BR os impactos que já vem causando em relação aos territórios e comunidades indígenas”, analisa.
A líder indígena ressalta que o documento não menciona as condicionantes que já foram apresentadas anteriormente pelo próprio Estado brasileiro, em outros estudos realizados. “A nossa grande luta é fazer com que pelo menos isso seja cumprido pelo Estado para que os impactos sejam menores em relação aos territórios indígenas”, pontua Mariazinha, que teme pelo aumento dos grileiros agindo dentro dos territórios indígenas.
“No momento em que a gente fala de crise climática, de ponto de não retorno, não dá pra entender o próprio estado do Amazonas e o Estado Brasileiro, que saem por aí ‘vendendo’ um projeto em imagem de mitigação, mas não cumprem com o seu papel de fazer valer as leis e de também buscar alternativas que criem um impacto menor dentro dos territórios indígenas”, diz a líder indígena.
Sem participação
Os autores do GT que produziu o documento afirmam que o relatório é resultado de audiências e estudos realizados em 2023. O documento argumenta que o empreendimento tem apoio de várias entidades e lista algumas delas. A maioria é de entidades de classe, como de engenheiros e advogados, e entidades ambientais, como o Centro da Indústria do Estado do Amazonas (Cieam) e a Suframa.
O relatório, no entanto, traz um destaque chamado de “Participação da sociedade civil”, sugerindo que as discussões sobre o empreendimento foram amplas. O documento diz que “convidou 33 organizações representando os povos originários, comunidades da região amazônica e ativistas climáticos para discutir a viabilização da BR-319”. Entre as citadas, está o Observatório do Clima e Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia (COIAB). Mas, segundo o relatório, “não houve contribuições ou apontamentos sobre as questões envolvendo o empreendimento”.
A coordenadora de políticas públicas do Observatório do Clima, Suely Araújo, negou que tenha participando das audiências e disse que não apresentou propostas. “A reconstrução e o asfaltamento da BR no contexto de falta de governança na região não apresenta viabilidade ambiental”, disse Suely à Amazônia Real.
Ela destacou que a licença prévia concedida durante o governo (Jair) Bolsonaro é nula. Para Suely, há necessidade de um olhar regionalizado, integrado, que considere também o planejamento governamental em termos de prevenção e controle do desmatamento.
“As consequências da decisão de asfaltar tudo serão muito graves. Estamos lendo ainda o plano básico ambiental formulado pelo DNIT, mas esperamos que o Ibama tome a decisão devida e antes de qualquer posicionamento sobre a licença de instalação, que a autarquia reavalie a licença prévia concedida pelo governo Bolsonaro”, sugeriu.
A reportagem procurou a Coiab, mas a entidade não respondeu às perguntas enviadas. A organização Observatório da BR-319, formada por uma rede de organizações ambientais e indígenas, foi procurada desde a semana passada para informar se iria falar sobre o relatório, mas até a publicação desta matéria, não se manifestou.
Sem validade técnica
Em artigo publicado no último dia 13, o cientista Philip Fearnside classificou o relatório como uma “mais uma manobra política”. No texto, ele aponta várias inconsistências e informações incompletas.
“O coordenador regional da Funai de Humaitá teria dito que o povo indígena Parintintin é a favor da rodovia e que eles aprovaram os estudos que lhes foram apresentados em audiências públicas como requisito para emissão da Licença Prévia. Nada se fala sobre os outros grupos Indígenas, como os Apurinã e os Mura, que se opõem fortemente ao projeto e estão basicamente em estado de pânico devido às grilagem de terras e invasões ligadas à BR-319 que já ocorrem dentro e ao redor de suas áreas tradicionais”, diz o pesquisador.
O biólogo e pesquisador Lucas Ferrante, que desenvolve pesquisas sobre os impactos da BR-319, afirmou que do “ponto de vista técnico, o relatório não tem validade nenhuma”. Lucas diz ainda ter identificado o que chamou de “uma omissão grave” no relatório.
“No dia 22 de fevereiro, o GT e o Ministério dos Transportes entraram [em contato] oficialmente comigo para que eu enviasse estudos sobre a BR-319. E nesse relatório sequer foi considerado um único estudo publicado em periódico científico revisado pelos pares”, afirma.
Para o pesquisador, o relatório do GT preocupa também porque ignora a consulta aos povos indígenas. “E ignora todo o impacto que inclusive só a obra de manutenção [da estrada] causou nos igarapés ao longo de toda a rodovia”, pontua.
Durante a realização do “Seminário entre lideranças indígenas e tomadores de decisão para discutir as violações dos direitos indígenas pela rodovia BR-319”, ocorrido esta semana em Manaus, foi produzido um documento que será encaminhado para o Ministério Público Federal denunciando a ausência de consulta aos povos indígenas e falta de estudos ambientais para o lote C da rodovia BR-319; anulação das audiências públicas do EIA/Rima do trecho do meio da rodovia; suspensão da licença de Manutenção; ação junto ao Incra para a desintrusão da ocupação da cabeceira do Capanã.
Ferrante também contesta o relatório no que diz respeito à viabilidade ambiental da obra. O pesquisador aponta a existência de vários artigos científicos revisados pelos pares que apontam a existência de um consenso científico de que a rodovia é inviável.
“É uma outra realidade alternativa que esse GT tenta pregar, ignorando tudo que a ciência falou e fala até hoje. Do ponto de vista técnico e científico, a rodovia é inviável e aquilo ali [relatório do GT] é um conto de fadas que não tem validade nenhuma até porque o parecer é o do Ibama. O Ibama é órgão técnico e não vai se prestar a aceitar aquilo como algo científico por conta da má qualidade, baixa informação e tendenciosidade que aquele documento tem”, ressaltou.
O que dizem os órgãos públicos
A reportagem de Amazônia Real procurou a Funai para questionar a posição do órgão sobre os termos apresentados no relatório do GT do Ministério dos Transportes e se órgão concorda com o que foi apresentado, além de perguntar como está o processo de reunião com os indígenas. A Funai também foi questionada se procede a informação do relatório, na qual consta que o coordenador do órgão em Humaitá, um indígena Parintintin, se manifestou favorável à obra da BR-319 e à aprovação dos estudos da licença prévia. Até a publicação desta reportagem, o órgão não respondeu.
O Ibama também foi procurado, mas não deu retorno às perguntas referentes aos licenciamentos.
O Ministério dos Transportes disse à Amazônia Real que a apresentação do relatório faz parte do cronograma do Grupo de Trabalho (GT), instituído pela Portaria 1.109, de 16 de novembro de 2023, com a finalidade de “avaliar a otimização da infraestrutura da rodovia, considerando os impactos socioambientais, a segurança viária e medidas de adaptação à mudança do clima no corredor de transporte de que faz parte a BR-319, que liga Manaus/AM a Porto Velho/RO”.
A próxima etapa, de acordo com o Ministério dos Transportes, consiste nas tratativas e pactuações com ministérios e órgãos de fiscalização por meio de acordos de cooperação, com compromissos claros, objetivos e integrados.
O Ministério dos Povos Indígenas (MPI) informou que acompanha e monitora todas as ações, obras e empreendimentos que possam ter impacto em terras indígenas. A pasta diz que tem reforçado, junto aos demais ministérios do grau, precisam ter, obrigatoriamente, a consulta prévia e livre aos povos indígenas.
Ainda segundo a nota enviada, o MPI diz que tem feito um alinhamento permanente e um diálogo permanente com o DNIT para que os povos indígenas sejam envolvidos nas tratativas em qualquer obra com uma série de itens e requisitos que resguardem os modos e direitos dos povos indígenas que aconteçam em seus territórios.
O MPI disse que defende o cumprimento do procedimento da consulta livre, prévia e informada, como estabelece a Convenção 169 da OIT, da qual o Estado Brasileiro é signatário, em respeito aos direitos dos povos indígenas e aos saberes daqueles que “protegeram as florestas e suas bacias hidrográfica durante séculos. Essa consulta evita potenciais impactos socioambientais para a região”, finalizou.
Há um ano, a Amazônia Real participou do consórcio internacional coordenado pela Forbidden Stories, que encabeçou o Projeto Bruno e Dom, que foi formado por mais de 50 jornalistas de 16 organizações de mídia. A agência foi o único veículo da região Norte do Brasil.
Como parte deste projeto, a agência publicou a reportagem “Uma BR-319 no meio do caminho”, mostrando os bastidores das tentativas de asfaltamento da BR-319, que liga Manaus a Porto Velho.