O sistema de justiça tem papel fundamental para proteger a natureza, garantir que as normas sejam cumpridas e tenhamos avanços.
Nas últimas semanas a campanha Bancando a Extinção, que atua para que recursos financeiros não cheguem mais a desmatadores, teve duas boas notícias vindas da justiça.
Primeiro o Greenpeace Brasil submeteu denúncias com os estudos de caso que mostravam concessão de crédito irregular ao Ministério Público Federal (MPF), que pouco tempo depois recomendou oficialmente que os bancos realizem levantamento interno e cancelem os financiamentos em áreas protegidas e florestas públicas não destinadas, e em seguida, o banco Lage Landen Brasil (DLL) liquidou um empréstimo irregular a um desmatador, após ser questionado na justiça.
Esses resultados mostram, em primeiro lugar, que a demanda da sociedade por regras mais rígidas para a concessão de crédito para atividades que destroem o meio ambiente é absolutamente legítima, e que a mudança é necessária.
Em segundo lugar, trazem à tona a importância do trabalho que o Greenpeace Brasil e tantas outras organizações socioambientais desempenham conjuntamente com os órgãos do sistema de justiça e os órgãos fiscalizadores para se fazer cumprir o que já é lei, no caso, as normas ambientais brasileiras.
Em abril deste ano, publicamos o relatório Bancando a Extinção: Bancos e Investidores como Sócios do Desmatamento”, onde denunciamos que devido a critérios insuficientes e processos falhos para a concessão de crédito, bancos públicos e privados vêm direcionando milhões em recursos, todos os anos, para atividades que promovem diretamente o desmatamento. O relatório trouxe 12 casos, que exemplificam como isso acontece na prática.
Para além do relatório, os estudos de caso que configuravam descumprimento das leis e normas do crédito rural viraram casos na justiça, através do envio de representações e também de denúncias individuais feitas pelo Greenpeace aos Ministérios Públicos Federais de cada estado.
“O Ministério Público Federal atua como fiscal da lei e tem como importante função institucional a proteção do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos. Ao receber representação de irregularidade sobre matérias de sua competência, através de procedimentos internos pode investigar os fatos e/ou requisitar informações complementares, como ocorreu em nosso trabalho, pois a partir das denúncias feitas pelo Greenpeace, o MPF solicitou que os bancos informassem as técnicas utilizadas para garantir que as propriedades beneficiadas com a concessão do crédito rural atendiam aos critérios do Manual de Crédito Rural (MCR), bem como as demais normas ambientais constitucionais e infraconstitucionais”, explica a gerente jurídica do Greenpeace Brasil, Angela Barbarulo.
O primeiro resultado desse trabalho apareceu no dia 05/06/2024, quando em resposta ao procedimento movido pelo MPF do Acre, houve um cancelamento de um contrato de financiamento de uma fazenda com embargo por desmatamento Ilegal, o que fere diretamente as regras do MCR. Logo que foi notificado, o banco DLL, que é um subsidiário do banco holandês Rabobank no Brasil, reconheceu a falha e tomou as medidas cabíveis, como mostra a resposta dada no procedimento pelo banco ao MPF/AC, que após providências tomadas pelo banco arquivou o processo.
“Quanto à operação de crédito rural realizada entre BDLL e o Sr. Siberman Madeira de Holanda Filho (“Operação de Crédito Rural” e “Sr. Siberman”, respectivamente) associadas ao empreendimento localizado na Fazenda Barcelona I, na cidade de Manoel Urbano, no Estado do Acre, mencionada na Manifestação, o BDLL verificou os fatos e informações trazidos pelo Greenpeace e informa que adotou as medidas regulatórias adequadas e que sejam de sua responsabilidade para revisão da operação sob o ponto de vista do MCR e das regras aplicáveis no contexto do BNDES”, traz a defesa apresentada pelo DLL.
A denúncia em questão tratava de dois empréstimos, com total de R$127,5 mil, concedidos à Fazenda Barcelona I, no município de Manoel Urbano, no Acre. O imóvel conseguiu acesso a linha de finaciamento pelo DLL, mesmo com um embargo por desmatamento ilegal de 41,8 hectares de floresta, e tendo o Cadastro Ambiental Rural (CAR) cancelado após a concessão do crédito.
“Os casos que o Greenpeace traz no relatório são exemplos concretos de como as lacunas nas normas do crédito rural e as falhas no cumprimento das leis e normas pelos bancos permitem que recursos subsidiados e o nosso próprio dinheiro vá para quem desmata e invade territórios indígenas, de conservação e florestas públicas. Para que o crédito rural seja uma ferramenta que estimule melhorias na agricultura com redução de impactos socioambientais, um dos ajustes necessários é impedir que essa grana vá para aqueles que cometem ilegalidades. Os reguladores e os bancos podem e devem fazer mais nesse sentido”, afirma Thaís Bannwart, da campanha de Amazônia do Greenpeace Brasil.
Afinal, a Constituição Federal determina que o Sistema Financeiro Nacional (SFN) deve estar estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do país e servir aos interesses da coletividade, em todas as partes que o compõem (art.192,CF/88), tendo como obrigação a inclusão dos preceitos e garantias constitucionais ambientais e de direitos humanos na atividade de financiamento de projetos e empreendimentos. Ou seja, a promoção do desenvolvimento equilibrado e a necessária subserviência aos interesses da coletividade pressupõem que o sistema financeiro e o mercado de concessão de créditos no país, impreterivelmente, deve tutelar e aprimorar as regras para a proteção dos recursos naturais.
Financiamento do crime em áreas protegidas tem que acabar
Mas a decisão mais importante veio no final de junho, com a Recomendação feita pelo Grupo de Trabalho Amazônia Legal, da 4a Câmara de Meio Ambiente e Patrimônio Cultural do Ministério Público Federal – MPF, para que oito bancos identifiquem as operações de crédito rural vigentes para imóveis rurais na Amazônia Legal localizados dentro de áreas protegidas, como Terras Indígenas e Unidades Conservação e encerrem os financiamentos, com a devida desclassificação e a liquidação antecipada das operações de crédito irregulares. A recomendação foi expedida após análise do MPF da representação e casos apresentados pelo Greenpeace Brasil.
A recomendação do MPF é dirigida aos seguintes bancos: Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal, Banco da Amazônia, Banco de Lage Landen Brasil, Banco Sicredi, Bradesco, Itaú e Santander. As instituições têm até 30 dias para informar se acatarão ou não a recomendação e, se acatada, também deverão comunicar quais medidas vão tomar para cumprir as orientações e apresentar um cronograma para cada uma das recomendações, que estão separadas por temas como terras indígenas, unidades de conservação e florestas públicas não destinadas.
A partir da representação do Greenpeace Brasil, o MPF questionou os bancos pelos fatos apresentados, e a maioria deles defendeu que cumpriam estritamente a regra do Manual de Crédito Rural. Mas o MPF afirma que, mesmo que cumpram o MCR, as instituições não podem esquecer de cumprir as demais normas ambientais e a Constituição Federal, como aponta a recomendação.
“O MPF, de forma assertiva, exige que os bancos cancelem as operações irregulares realizadas antes da vigência da Resolução CMN nº 5.081, de 29 de junho de 2023, afinal a Constituição Federal assegura o usufruto exclusivo dos povos indígenas sobre seus territórios, da mesma forma que a Constituição também prevê a conservação dos espaços territoriais especialmente protegidos (artigo 225, §1º, inciso III), a exemplo das unidades de conservação (Lei nº 9.985/2000) e das florestas públicas não destinadas (Lei nº 11.284/2016), cabendo ao Poder Público, incluindo aqui os bancos, empregar os meios e esforços necessários para evitar e reprimir invasões nas áreas sujeitas à concessão florestal (artigo 2º, §3º da Lei nº 11.284/2006)”, detalha Angela Barbarulo.
Outro ponto importante é que os procuradores da República destacam na recomendação que o desenvolvimento de atividades agropecuárias nestas áreas protegidas pode, conforme o caso, caracterizar crime de invasão de terras públicas ou o delito de causar dano em unidade de conservação; e que a responsabilidade civil por danos ambientais é objetiva e solidária entre todos os envolvidos, o que incluiria, nestes casos, os bancos. “Não importa se a instituição financeira exigiu todas as licenças e autorizações necessárias para a atividade financiada ou se controlou o desenvolvimento dessa atividade; o simples fato de financiar uma atividade que cause dano ao meio ambiente já estabelece o dever de reparação”, afirmam os procuradores no documento.
A recomendação, assinada por todos os dez procuradores do GT da Amazônia Legal, tem com objetivo orientar a necessidade dos bancos observarem as normas e visa a adoção de medidas práticas para sanar questões em debate, porém os bancos que não a acatarem poderão ser processados, com a adoção pelo MPF de medidas administrativas e ações judiciais cabíveis contra o responsável, além do fato de que a ausência de atendimento a recomendação também pode tornar inequívoca a demonstração da consciência da ilicitude e caracterização de dolo, má-fé ou ciência da irregularidade, provas estas para eventuais ações cíveis ou criminais.
“A responsabilidade civil por danos ambientais é objetiva e solidária, fundada na teoria do risco integral, podendo alcançar todos aqueles que, por ação ou omissão, contribuírem para a poluição ou degradação do meio ambiente. Desde 1981, a Política Nacional de Meio Ambiente (PNMA), determina que aqueles que financiam atividades prejudiciais ao meio ambiente e contribuem para que o dano ocorra podem ser responsabilizados civilmente como poluidores indiretos. As instituições financeiras têm a responsabilidade de respeitar as normas ambientais e se abster de infringir os direitos humanos e, não somente isso, elas devem prevenir e remediar os impactos negativos que geram”, explica Angela Barbarulo.
Alguns veículos noticiaram, erroneamente, que o Greenpeace luta pelo fim do crédito rural na Amazônia. Enquanto o que nós e a sociedade defendemos é que é preciso separar agricultores de criminosos ambientais, evitando que recursos sejam destinados de forma irregular para desmatadores e para aqueles que levam violência e conflitos a territórios indígenas e comunidades tradicionais.
A sociedade não compactua com o desmatamento, nem com a violência, e não deseja que seu dinheiro seja destinado, seja via crédito, seja via investimentos, para essas atividades que ajudam a consolidar um cenário de clima instável e extinção. É necessário que tanto as agências reguladoras, quanto às instituições financeiras aumentem o rigor de suas regras para a concessão de crédito e investimentos em atividades, produtores rurais e empresas que promovem a destruição ambiental e violem direitos.
Fonte: Greenpeace Brasil