Com níveis abaixo da normalidade, principais bacias da região iniciaram processo de vazante antecipado e aumentam temor de nova seca extrema em 2024
(Wérica Lima – Manaus/AM*) – Choveu bem menos do que o esperado em 13 das 20 bacias hidrográficas da Amazônia. Para 10 delas, o nível de precipitação de chuvas foi considerado “extremamente seco”. Nas últimas semanas, os ribeirinhos passaram a notar que os rios iniciaram um processo de vazante acentuado – e bem antes do previsto. Moradores de 7 dos 11 municípios que mais sofreram com a grave seca do ano passado mal se recuperaram daquele dramático período e agora temem que a história se repita. Cientistas estão cautelosos, mas não descartam a reedição de uma nova grande seca na Amazônia.
O nível “extremamente seco” significa uma precipitação abaixo de 5%, segundo o monitoramento realizado pelo Serviço Geológico do Brasil (SBG) da Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais (CPRM). As porcentagens são definidas a partir de uma média dos últimos 22 anos nas bacias dos rios que compõem a Amazônia. Os dados utilizados são do Merge GTM, um sistema que integra dados pluviômetros observados na América do Sul feito pelo Centro de Previsão de Tempo e Estudos Climáticos do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (CPTEC/Inpe).
Conforme o 25º Boletim de Alerta Hidrológico do SGB-CPRM, de 21 de maio a 19 de junho de 2024, a Bacia do rio Amazonas está com quadro de chuvas abaixo do esperado em grande parte da região, com déficit principalmente nos afluentes rios Purus e Madeira, as duas que mais apresentam níveis abaixo da normalidade. Os rios Aripuanã, Beni, Coari, Guaporé, Içá, Japurá, Javari, Ji-Paraná, Juruá, Jutaí, Mamoré, Marañon, Napo, Tefé, Ucayali e o curso principal do Solimões também encontram-se abaixo do esperado.
No rio Madeira, o nível da estação de Humaitá é o mais baixo da história para junho: 13,2 metros. A diferença do nível da água é de 3 metros a menos da maior seca registrada para o mesmo período, em 2023. Tabatinga (rio Solimões) é o segundo município do ranking com a cota mínima muito abaixo do último recorde, no ano passado. O município não registrava uma cota abaixo dos 8,7 metros desde 2010. Em 21 de junho, o nível do rio atingiu 6,7 metros, quase dois metros abaixo do registro de 14 anos atrás.
“Em Tabatinga, na região a montante do Solimões, o período de recessão do rio iniciou essa semana (a 3º semana de junho), com descidas diárias médias na ordem de 22 centímetros”, informou Jussara Maciel, pesquisadora do SGB-CPRM, à Amazônia Real. Ela alertou, contudo, que desde abril houve oscilações nas subidas dos rios (durante o período chuvoso), justamente no período em que os níveis das bacias estavam no limite do intervalo da normalidade. “Por isso atualmente apresenta níveis abaixo da faixa da normalidade e próximo do intervalo das mínimas já registradas para a época.”
Com 1,8 metro abaixo do último recorde em 2023, Beruri (rio Purus) é o terceiro município do ranking com o nível mais baixo para o período. Outras cidades com mínima abaixo do já registrado são Manacapuru (-1,5 m), Manaus (-1,3 m), Careiro (-1,3 m), Itacoatiara (-1,4 m) Rio Branco (-1,3 m), Parintins (-1,1 m), Itapéua (-77 cm) e Fonte Boa (-63 cm).
“No rio Amazonas, região mais a jusante, na estação de Itacoatiara, o pico da cheia normalmente ocorre no final de maio, mas em 2024 ocorreu em junho, que iniciou as descidas nesta semana (3ª semana de junho), contudo os níveis do rio Amazonas são considerados abaixo da faixa da normalidade. Assim, esse período de início de estiagem requer certa atenção”, alertou Jussara.
Na Amazônia, só as bacias do rio Negro e do Rio Branco registraram chuvas consideradas normais no período que antecede a estiagem.
Conforme a Plataforma Água do Mapbiomas, a superfície média mensal de água na Amazônia Legal fica acima dos 10 milhões por hectare desde 1985. Mas, no ano passado, a média chegou a 9 milhões, a menor marca já registrada e indica um alerta para esta seca que se encontra semelhante à anterior. Um dos sinais é o de que 7 dos 11 municípios que estiveram em situação mais grave na seca de 2023 estão com os níveis dos rios abaixo de todos os outros anos da história.
Nova seca extrema
Apesar dos números que assustam, os pesquisadores hesitam em prever uma nova grande seca. “A gente tem que ter muita cautela em avaliar o cenário para 2024, podemos ter uma nova seca extrema, mas se ela vai acontecer, não sabemos, é cedo para saber”, afirmou Ayan Fleischmann, hidrólogo líder do grupo de Análise Geoespacial do Instituto Mamirauá. Para ele, as próximas semanas serão fundamentais para uma previsão mais assertiva.
Ayan Fleischmann não deixa de apontar os pontos críticos até o momento. “A cheia foi fraca em Tabatinga e no Alto Solimões basicamente não teve cheia. Foi impressionante como foi baixa a cheia deste ano”, disse ele. Alocado em Tefé, o pesquisador contou que as águas no Médio Solimões não estão tão baixas em relação à média esperada, ao contrário do que ocorreu em Tabatinga. “Lá ficou muito mais abaixo da média, porque alguns rios entre Tabatinga e Tefé vieram com um pouco de água como Japurá e outros rios.”
Ane Alencar, diretora do Instituto de Pesquisas da Amazônia (Ipam) e coordenadora da rede colaborativa Mapbiomas Fogo, lembrou que a estação seca de 2024 iniciou com um déficit (de chuvas), ainda que o El Niño esteja perdendo força e dando lugar ao fenômeno La Niña, um evento gerado pelo resfriamento das águas do Oceano Pacífico Equatorial e que influencia na abundância de chuvas na Amazônia.
O problema é que os efeitos do La Niña, que traz mais chuvas para a região, começarão a ser notados apenas no final do ano. “Precisaríamos que o período chuvoso de 2024 fosse forte o suficiente para recarregar o solo e suprir a demanda de água que foi utilizada, em 2023 e início deste ano”, explicou Ane Alencar. “Isso vai impactar a próxima estação seca porque a gente não teve um período chuvoso na Amazônia muito satisfatório.”
Cientistas da tríplice fronteira Madre de Dios, Peru– Acre, Brasil – Pando e Bolívia (MAP) emitiram um alerta em 25 de fevereiro de 2024 sobre seca severa, ondas de calor, queimadas e fumaça. O documento, no qual a Amazônia Real teve acesso, previu com todas as letras que uma seca mais intensa poderia acontecer, iniciando-se entre maio e julho de 2024, baseado nas previsões emitidas pelo International Research Institute for Climate and Society (IRI) e pelo Centro Europeu para as Previsões Meteorológicas a Médio Prazo (ECMWF).
“As previsões indicam ocorrência de chuvas abaixo do normal e temperaturas acima do normal para os próximos seis meses. Caso o clima se comporte de acordo com estas previsões, antecipamos problemas agudos de abastecimento de água, ondas de calor e queimadas acidentais em áreas agrícolas e incêndios florestais. Estes últimos repercutiriam em altos níveis de fumaça com implicações sérias para a saúde humana e ambiental”, diz a carta.
“As previsões que usamos do IRI da Universidade de Columbia foram colocadas em termos de probabilidades de chuvas ou de temperatura estando acima ou abaixo do normal. Por enquanto, as previsões seguem as tendências previstas”, adiantou Foster Brown, pesquisador da Universidade Federal do Acre e membro do Grupo Trinacional MAP.
A carta lista cinco tipos de recomendações para as autoridades prevenirem impactos maiores a partir de planos de contingência nos âmbitos de abastecimento de água, identificação e controle das queimadas, redução de impactos de ondas de calor em populações vulneráveis, monitoramento do ar e acompanhamento das previsões meteorológicas locais de curto prazo.
Foster Brown explicou que o “adiantamento” da seca este ano não necessariamente pode ser algo anormal e que pode ocorrer uma variação “natural” desse período como em 1925/1926. “Os efeitos das atividades humanas, seja desmatamento, seja emissão de gases de efeito estufa, amplifica a variabilidade natural do clima. Tivemos secas prolongadas no passado, naturalmente. Agora temos a aceleração causada por atividades humanas”, disse.
Brown ressaltou, com preocupação, que o rio Acre teve uma grande cheia esse ano e que em apenas três meses já baixou 15 metros. No último Boletim do SGB, faltavam apenas 64 centímetros para o Acre superar a maior seca da história registrada no Estado. Em 21 de junho, o rio Branco registrou 1,8 metro, uma diferença de 1,3 metro para o último recorde registrado em 2022. “Seria difícil generalizar do Acre para o Amazonas, mas não é um bom indicador”, afirmou Brown.
Os fatores que levam à seca
Se houver uma nova seca extrema, o cenário que se projeta é que o auge dela ocorra entre setembro e outubro no Médio Solimões, por exemplo. Até lá, o nível dos rios seguirá baixando. Fleischmann lembrou que não é comum se ter uma seca seguida da outra. “Aqui no Médio Solimões houve secas muito fortes em 1998, depois 2010 e em 2023. No entanto, a gente está navegando em águas desconhecidas que são as mudanças climáticas. O clima já não opera mais como a gente conhecia e por isso é tão difícil a gente realizar previsões acuradas”, explicou.
Na análise do hidrólogo, a Amazônia ainda enfrenta outro desafio na estiagem deste ano associado às mudanças climáticas. “O Oceano Atlântico Tropical, que é bastante associado a secas na Amazônia, está ainda muito quente, em um nível nunca antes visto”, afirmou. “Uma anomalia muito positiva no Oceano Atlântico Tropical Norte pode já estar por trás de uma estiagem severa nos próximos meses, então isso é um fator de preocupação.”
A grande seca de 2023 trouxe muitos ensinamentos, alguns dolorosos para ribeirinhos e pesquisadores, mas algumas lições ficaram. Um dos momentos mais fatídicos da Amazônia foi quando botos e tucuxis apareceram boiando no lago Tefé. Ao menos 222 animais morreram devido ao calor extremo.
“Esse ano a gente estará muito mais preparado”, adiantou Fleischmann. No caso dos botos e tucuxis, os cientistas trabalham com hipóteses variadas. Uma delas é a de que os animais mais vulneráveis já tenham morrido no ano passado e que se acontecer algo parecido não haverá tanta mortandade. “A gente tem que trabalhar com vários cenários na hora de gerir esse possível desastre.”
O lapso na Bacia Amazônica
Jhan-Carlo Espinoza, especialista em clima e hidrologia da Amazônia e diretor de Pesquisa do Instituto Francês de Pesquisa para o Desenvolvimento (IRD), baseado no Peru, afirmou que há várias décadas está sendo observado um prolongamento da seca no sul da Amazônia quando se compara o atual cenário com o clima da década de 1970.
Segundo ele, é muito importante lembrar que a Amazônia é a maior bacia do planeta e que as condições hídricas dos principais rios dependem de chuvas que ocorrem vários meses antes da seca. O déficit de precipitação que ocorreu na Amazônia transfronteiriça deve ter como resultado um impacto em 2024 semelhante ao de 2023 somado à continuidade do El Niño durante o verão.
“Ressalta-se também que a região de precipitação máxima em toda a bacia amazônica é a região de transição andino-amazônica do Peru, Bolívia, Equador e Colômbia. Essas características deixam clara a importância de monitorar a Amazônia e do continente sul-americano depende fortemente do papel da floresta amazônica, que é a maior floresta tropical do planeta. Os estudos citados mostram que o desmatamento na Amazônia não só reduz a disponibilidade de água na atmosfera (devido à diminuição da evapotranspiração florestal), também regiões fora do Brasil para propor melhores cenários de emergência climática na região central da Amazônia”, afirmou.
Conforme Espinoza, as condições quentes nos oceanos Pacífico e Atlântico estão frequentemente associadas a déficits pluviométricos na Amazônia. Além disso, o aquecimento global intensifica os impactos das secas, aumentando a temperatura e diminuindo a disponibilidade de água nos solos. “Além do aquecimento global, o ciclo hidrológico da Amas também pode modificar a circulação atmosférica regional, retardando o início das chuvas, principalmente no sudoeste da bacia, conforme observado em 2023 e 2024”, concluiu.
“A gente tem meses para se prevenir, para se preparar para tomar ações, cobrar o poder público das suas responsabilidades, as Defesas Civis para melhorar por exemplo o acesso à água”, ressaltou Ayan Fleischmann. O pesquisador afirmou que uma das soluções preventivas para esse período que já poderiam ter sido tomadas é a captação da água da chuva, implementação de mais poços artesianos fundos e o acesso à recursos para tratar a água do rio.
A Amazônia Real procurou o governo do Amazonas e a Defesa Civil do Estado para saber quais medidas estão sendo tomadas para reduzir os impactos de uma possível nova seca extrema este ano. Chegou a procurar também a prefeitura de Tefé para saber as ações locais de enfrentamento num dos municípios mais afetados em 2023. Os órgãos não responderam às perguntas encaminhadas.
*Wérica Lima é formada em comunicação social com ênfase em jornalismo pela Universidade Nilton Lins e estudante de Ciências Biológicas no Instituto Federal do Amazonas (IFAM). Trabalhou na assessoria do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA) e publicou artigos pela Climate Tracker, organização internacional que apoia o jornalismo climático.
Por Amazônia Real