Único rio da bacia amazônica a cruzar quatro países, o Rio Içá deságua em Santo Antônio do Içá, no Amazonas, onde facções criminosas de distintas nacionalidades se encontram e entram em disputas violentas por ouro e cocaína
Esta é uma história sobre piratas, pessoas que combatem piratas, Cruzadas, homens poderosos e legumes enganosos. Mas está longe de ser uma ficção. Ela é o retrato de uma realidade complexa que mostra como as fronteiras imaginárias de um Rio que cruza quatro países permitem que o crime organizado avance sem freios e se beneficie com a destruição da Amazônia.
Capítulo 1. As cebolas
Em 6 de janeiro, uma segunda-feira, uma cozinheira apanhou uma cebola para preparar o almoço em Santo Antônio do Içá, município no Amazonas, fronteira com a Colômbia. Ao levantá-la, sentiu um peso maior do que o habitual e chamou o patrão. O homem apanhou uma faca e tentou partir a casca, mas dentro havia um material duro e amarelado. Era pasta base de cocaína.
A cebola recheada com entorpecente tinha sido comprada no sábado anterior pela sogra dele, contou o homem ao levar o legume à Base Garateia da Polícia Federal, uma casa em reforma que abriga dois agentes, às vezes três, e é responsável por vigiar uma das rotas do narcotráfico mais movimentadas do mundo. Ela havia sido adquirida no supermercado Içaense, o maior de Santo Antônio do Içá – que tem como um dos sócios o prefeito da cidade, Walder Ribeiro da Costa, o Cecéu, do MDB. Na casa do depoente, foram achadas mais duas cebolas recheadas com a droga. Os policiais seguiram, então, para o supermercado. Revistaram cebola por cebola, mas não encontraram mais nenhuma cocaína.
Até que uma semana depois aconteceu de novo. Outro morador do município levou para casa novas cebolas recheadas com drogas compradas no supermercado do prefeito.
Naquele sábado em que a compra do primeiro legume batizado foi feita, a Polícia Militar havia apreendido, depois de uma denúncia anônima, um saco de cebolas recheadas com 16 quilos de pasta base de cocaína perto do porto da cidade. Refinada, a substância se transforma em cloridrato de cocaína, o pó branco cujo quilo pode custar centenas de milhares de dólares no exterior. “Quando prenderam essa saca, a droga já estava lá no mercado do prefeito”, disse um policial, que falou com SUMAÚMA sob a condição de anonimato.

Cebolas recheadas de drogas foram compradas no mercado Içaense, que pertence ao prefeito
O gerente do mercado contou que as cebolas faziam parte de uma encomenda de dez sacas feita a um fornecedor de Tabatinga, a maior cidade da região. Tabatinga também fica na fronteira com a Colômbia, a nove horas de lancha dali – e o fornecedor era um brasileiro descendente de peruanos.
Para investigar o caso, dois inquéritos foram abertos, um pela Polícia Civil do Amazonas, o outro pela Polícia Federal. Ambos estão em andamento. A princípio, segundo apurou SUMAÚMA, o prefeito não está sendo investigado. No fim de março, o delegado de Santo Antônio do Içá, Ubiratan Farias, pretendia realizar uma acareação entre o gerente do mercado e o fornecedor das cebolas, porque suspeitava que um deles tivesse mentido durante o depoimento.
O caso das cebolas misteriosas ilustra a complexidade da vida nas fronteiras amazônicas, onde o crime organizado se mistura entre países diferentes e circula livremente diante da ausência do poder público. Fronteira, ali, não significa uma barreira com policiais alfandegários checando cada documento. Ela é só um rio, por onde barcos passam sem nenhum controle ou impedimento. Às vezes, há apenas uma base do Exército responsável por áreas com enormes extensões.

Nas fronteiras entre os países, barcos navegam livremente sem nenhuma barreira alfandegária
Capítulo 2. As facções
Naquelas águas, não se sabe ao certo onde começa e onde termina um país. E o crime organizado se confunde entre as diversas nacionalidades, conforme mostrou uma investigação jornalística liderada pela Rede Transfronteiriça do OjoPúblico, do Peru, em parceria com SUMAÚMA e os jornais La Silla Vacía, da Colômbia, e Código Vidrio, do Equador. A reportagem conta que o tráfico de drogas está presente em sete de cada dez localidades na fronteira amazônica dos quatro países: Brasil, Peru, Colômbia e Equador. Em muitos deles, diversas facções atuam. Às vezes, de países diferentes, que colaboram entre si.
Santo Antônio do Içá é uma dessas localidades. Pela manhã, o trânsito de motos já é frenético. Na garupa, os passageiros quase sempre carregam peixes pendurados pela boca. Não usam capacete sob o sol que arde. Com ruas esburacadas, os bairros se afundam em poeira diante da imensidão do Rio. O município de quase 28 mil habitantes é onde deságua o Rio Içá, que nasce nos Andes colombianos com o nome de Putumayo e serpenteia por quase 2 mil quilômetros pelas fronteiras da Colômbia com o Equador e o Peru até chegar à Amazônia brasileira. Ali, ele se junta ao Rio Solimões – como é chamado o Rio Amazonas naquela parte. Por isso, o Içá se tornou essencial para a logística de transporte das drogas produzidas nos vales dos países vizinhos. Ele é o único da bacia amazônica a cruzar os quatro países. Suas águas amarronzadas percorrem áreas ermas de floresta densa e pouco vigiada trazendo ao Brasil a cocaína e a maconha produzidas nos países vizinhos. “É todo dia. De madrugada começa [o fluxo de lanchas]”, afirma um Indígena que mora perto do Rio. “É, é à noite o movimento deles [traficantes]”, uma moradora concorda.

Infográfico: Rodolfo Almeida/SUMAÚMA
As cebolas recheadas de drogas são parte de um ecossistema dominado por facções criminosas, garimpeiros, empresários e políticos ricos que lucram também com a destruição ambiental. E há um agravante: as facções criminosas do Sudeste brasileiro, mais organizadas, começaram a subir para o norte do país com mais intensidade há cerca de dez anos e profissionalizaram a atuação nessas fronteiras. Antes operado por criminosos locais, o controle do fluxo ilegal, que inclui também armas, passou na última década para as mãos de facções como o Primeiro Comando da Capital (PCC), de São Paulo, e o Comando Vermelho (CV), do Rio de Janeiro, conta o pesquisador César Mello, coronel da reserva da Polícia Militar do Pará e consultor do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, uma organização que mapeia a atuação criminal no Brasil.
Segundo Mello, o Comando Vermelho chegou à Amazônia brasileira com mais intensidade em 2017, depois da morte de Jorge Rafaat Toumani, o ex-rei da fronteira no Paraguai, pelas mãos do PCC. A fronteira paraguaia era uma das principais rotas de drogas do país e, com o domínio dela pelo PCC, rival do CV, a facção do Rio de Janeiro decidiu concentrar os esforços no norte do Brasil, nas fronteiras com a Colômbia e o Peru. “A FDN, Família do Norte, que chegou a ser a terceira maior facção do Brasil, controlava aquelas rotas [da fronteira com a Colômbia e o Peru], mas era um negócio meio amador. Quando houve a morte do Rafaat e o PCC dominou aquela rota do Paraguai, o Comando Vermelho subiu para o Norte para não deixar o PCC dominar a rota também, ou não teria acesso a drogas. Vieram para o Norte muito fortes e hoje consolidaram essa rota”, afirma Mello.
Em 2024, 15 toneladas de cocaína foram apreendidas no Amazonas por forças estaduais de segurança – o dobro da quantidade registrada no ano anterior. Neste início de 2025, foram apreendidas 11 toneladas de entorpecentes (de todos os tipos), sendo 1 tonelada na região da Tríplice Fronteira, onde fica Santo Antônio do Içá. No Brasil todo, em 2024, a Polícia Federal confiscou 74,5 toneladas de cocaína, num movimento inverso ao que aconteceu no estado amazônico: as apreensões nacionais de cocaína diminuíram e ficaram abaixo da média dos últimos cinco anos, segundo dados levantados pela organização Fiquem Sabendo. A Secretaria de Segurança Pública do Amazonas afirma que aumentou suas ações de fiscalização.
De acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU), do lado de lá das fronteiras amazônicas brasileiras – no Peru, na Colômbia e na Bolívia – repousam 355 mil hectares de plantações de folha de coca, uma área duas vezes maior que a cidade de São Paulo. O relatório estima que, em 2022, essas plantações renderam 2.757 toneladas de cocaína pura. Em 2014, a produção estimada foi de 869 toneladas. Houve um aumento de 217% em oito anos. Segundo a ONU, havia 23,5 milhões de usuários de cocaína no planeta em 2022.
Em Santo Antônio do Içá, além do carregamento de cebolas recheadas com drogas, 1 tonelada de maconha do tipo skunk foi apreendida em fevereiro passado no Rio Içá pelo Exército. Em agosto do ano passado, 4 toneladas de cocaína foram descobertas em Benjamin Constant, perto dali – a maior apreensão de drogas da história do Amazonas.
Os municípios de Leticia, na Colômbia, e Tabatinga, no Brasil, são vizinhos e esse último é uma das 50 cidades mais violentas da Amazônia Legal
Segundo a polícia e moradores ouvidos por SUMAÚMA, boa parte dos carregamentos clandestinos flagrados naquela região pelas autoridades passa pelo Rio Solimões durante a madrugada, em frente a Santo Antônio do Içá. A maior parte, no entanto, segue sem obstáculos, tanto pelo Solimões como pelo Rio Içá. Além do narcotráfico, as facções passaram a controlar os crimes ambientais. Atuam com garimpo e pesca ilegal, desmatamento e biopirataria, afirma o consultor do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Em Santo Antônio do Içá, o tráfico de drogas permanece sob o domínio do Comando Vermelho, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Apesar disso, outras facções coexistem no Alto Solimões. Muitas vezes, a disputa pelo território acaba em conflitos, aumentando o número de homicídios nessas localidades. A vizinha Tabatinga, por exemplo, está entre as 50 cidades mais violentas da Amazônia Legal entre 2021 e 2023, com uma média de 77,4 vítimas para cada 100 mil habitantes. Entre 2021 e 2023, a média da taxa de mortes violentas intencionais foi de 23,4 no Brasil, e de 33,4 na Amazônia Legal, número 42,4% maior que a média nacional. Em alguns casos, contudo, as facções entram em acordo para dominar atividades criminosas distintas, o que diminui os conflitos.
Santo Antônio do Içá é um exemplo. Numa tarde de março, muros desgastados pelo sol e pela chuva estampam as siglas das facções no centro da cidade. “CV-AM”, lê-se em um. “PCC”, em outro. “O PCC está mais ligado aos garimpos no Norte hoje em dia. O CV, às drogas”, diz Mello. Em Santo Antônio do Içá, a média da taxa de mortes violentas intencionais é baixa, de menos de nove vítimas para 100 mil habitantes entre 2021 e 2023.

Facções rivais muitas vezes coexistem em um mesmo município, mas entram em acordo para dominar atividades criminosas distintas
De acordo com a terceira edição do estudo “Cartografias da Violência na Amazônia”, publicado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública em dezembro de 2024, a presença de facções foi identificada em 21 dos 62 municípios do Amazonas. Em 13 havia apenas um grupo. Em oito “foi observada a coexistência de duas ou mais facções”. O Comando Vermelho, hegemônico em dez cidades, está em todos os 21 municípios, “mesmo naqueles em que há mais de uma facção”. Segundo os pesquisadores, outras três cidades são dominadas pelos Piratas do Solimões, facção local, e mais três pelo PCC.
O estudo também revela que, no Rio Içá, há “indícios da presença” das facções colombianas “que atuam como aliadas do CV no abastecimento de maconha e cocaína, transportadas pelos rios”. “As facções colombianas entregam drogas na região da fronteira a membros do CV”, diz outro trecho do documento. Na região do Rio Putumayo, predomina o grupo Comandos da Fronteira (Comandos de la Frontera, em espanhol), conhecido também como “A máfia Sinaloa”, em função de um de seus antigos líderes, Pedro Oberman Goyes, apelidado “Sinaloa”, assassinado por um comparsa em 2019. Formada por cerca de mil ex-guerrilheiros dissidentes das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, as Farc, segundo a organização InSight Crime, a facção nasceu em 2017, depois de um acordo de paz firmado entre as Farc e o governo colombiano. No Rio Içá, eles providenciam a droga e cuidam do frete. Os criminosos brasileiros tratam de distribuir às capitais, seguindo a rota pelo Rio Amazonas, que ruma dali para Manaus.
O Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostra que o Solimões, que recebe as águas do Içá, se destaca entre todos os rios amazônicos como a principal rota de traficantes, porque integra os territórios de Brasil, Peru e Colômbia, na região da Tríplice Fronteira Norte. Depois dele, outros rios são importantes: Javari, Içá, Japurá, Juruá, Purus, Negro e Mamoré, todos localizados na Região da Amazônia Ocidental (nos estados do Amazonas, Acre, Roraima e Rondônia). Ainda segundo o estudo, a cocaína chega a Manaus pelo Rio Amazonas e, ao longo do trajeto, embarca em navios cargueiros para a África e a Europa. A Amazônia possui hoje dez municípios com estruturas portuárias que “interligam a região ao mundo”. Os traficantes também usam “submarinos artesanais”, capazes de levar drogas “da Colômbia até outros continentes, atravessando a Amazônia através dos rios Solimões e Amazonas”, aponta o levantamento.
Pela manhã, em Santo Antônio do Içá – onde seis de cada dez habitantes recebem o Bolsa Família e o acompanhamento da frequência escolar pelo poder público está abaixo da média nacional – o porto está lotado. O cheiro de peixe e salgados recém-assados toma o galpão. A poucos metros dos muros pichados, os moradores da cidade vieram receber os pescadores e negociar os peixes capturados durante a noite. Tambaquis. Surubins. Bodós. Pirapitingas. Um Jacaré sem a cabeça. A abundância do Rio contrasta com a pobreza da cidade, composta em sua maior parte por casas de madeira sem saneamento básico. Cachorros maltratados e doentes se espalham nas esquinas. Há uma mulher agachada com uma panela sobre a lenha pegando fogo. Ruas esburacadas, ladeiras íngremes. A miséria. Uma realidade que Vilma (nome fictício), de 35 anos, vive desde pequena. Usuária de drogas, ela caminha pelo porto, enquanto abre a bolsa e desenrola uma sacola plástica cheia de arroz cozido. Apanha a comida com as mãos e começa a comer. “Tá faltando a farinha”, diz, e joga a comida aos peixes. “Detesto comer sem farinha.” Ela endireita a postura e contrai o rosto, séria, enquanto mira um homem bêbado ao longe, que vem andando. “Tio, senta aqui”, diz Vilma, ao tentar ajudar o homem, que cambaleia. “Esse aí é meu tio”, ela diz. “Ele me estuprou quando eu tinha 7 anos.”

O casario em Benjamin Constant e os Ribeirinhos em Santo Antônio do Içá fazem parte da paisagem no ‘território narco’
Mototaxistas transitam por todos os lados. A cauda cor-de-rosa de um Boto salta para fora da água. As caixas de som tocam reggaeton colombiano, marca da influência do país vizinho. “Na música, na comida, em tudo…”, diz uma moradora. Quando você se hospeda em um hotel, o café da manhã é também patacón. “Os traficantes, às vezes, escondem uma carga no Rio, no mato. Pescador que chegar perto morre”, diz um morador, no porto. “Já morreram dois assim”, continua. “Eles afundam a droga [no rio], fica dias afundada, depois dão um jeito de subir [fazer emergir].” O Rio Içá fica muito escuro durante a noite, ele diz.
Capítulo 3. Os garimpos e a seita
“Agora eles pagam para os colombianos, caso precisem saltar para o lado de lá [da fronteira, para fugir da polícia]”, diz uma liderança, que preferiu não se identificar. Ela se refere aos garimpeiros que operam no território de Santo Antônio do Içá. Estão cada vez mais longe, subindo o Rio Içá, nos igarapés, no Rio Puretê, diz, principalmente depois de operações da Polícia Federal terem explodido balsas com dragas no ano passado. Atualmente, a maior parte das dragas se concentra no Puretê, mais perto da fronteira com a Colômbia, afirma.
O Puretê, que alimenta o Içá, também se origina no país vizinho e está cada vez mais assoreado pela areia e pelo cascalho. As dragas sugam seu leito e o cospem para as margens, junto com mercúrio. Na parte que cruza a fronteira, o Puretê é deserto. Não conta com uma base do Pelotão Especial de Fronteira do Exército brasileiro, como acontece à beira do Rio Içá, em Ipiranga, um vilarejo militar com uma pista de pouso e uma comunidade de cerca de mil pessoas, que marca a separação com a Colômbia.
O trajeto entre a fronteira e Santo Antônio do Içá leva ao menos doze horas de lancha – ou semanas, por uma antiga trilha na mata que começa em Tarapacá, na Colômbia, conta uma moradora. No meio do caminho pelo Rio, fica a Vila Alterosa do Juí, uma comunidade fundada por José Francisco da Cruz, o Irmão José, líder de uma seita religiosa chamada Ordem Cruzada Evangélica Católica Apostólica, ou Irmandade da Santa Cruz – uma religião que mistura catolicismo e evangelismo –, que em 1972 saiu a espalhar cruzes vermelhas pelos barrancos do Alto Solimões e do Içá, de maneira que hoje há mais comunidades da “Cruzada”, como é conhecido o culto na região, que católicas ou evangélicas por ali.
“Eles [garimpeiros] têm uma base lá, de abastecimento, as dragas são construídas lá. Tem oficina, tem tudo”, diz uma liderança sob anonimato. Ao cruzar o Rio, “há drones te vigiando”, contam outros três moradores da região. “Quando você passa no Puretê, já tem um drone te filmando. Dos garimpeiros”, afirma um morador que trabalha com saúde Indígena e costuma visitar as comunidades. “Aqui todo mundo sabe de tudo, mas ninguém diz nada”, diz outro morador.
Na Vila Alterosa do Juí, um vilarejo de cerca de 5 mil pessoas que está localizado no meio do Rio Içá – aonde só se chega por água ou ar e todo o entorno, por quilômetros, é Floresta preservada –, a Cruzada tem sua própria guarda. A vila fica perto da foz do Rio Puretê, que, como o Içá, leva à Colômbia. “Hoje são uns 3 mil que seguem essa seita”, diz o padre de Santo Antônio do Içá, Gabriel Carlotti. Ele aponta para as igrejas Católicas, poucas, em um mapa que mostra o Rio Içá. A maioria das comunidades pertence à Cruzada. As mulheres usam vestido até os joelhos e carregam uma cruz no peito. Os seguidores são obrigados a participar de dois cultos por dia e proibidos de praticar esportes – “Porque, se machucam, como vão trabalhar?”, diz Bento Kokama, um seguidor, na aldeia São José, onde há fiéis da seita. O sociólogo Pedrinho Guareschi registrou que o fanatismo religioso servia de instrumento para coronéis interessados em explorar a mão de obra Indígena. Morto nos anos 1980, o missionário Irmão José está enterrado no vilarejo. Atualmente, seu sucessor, conhecido como pastor Damásio, cria búfalos e administra a arrecadação da igreja. O pastor não foi localizado pela reportagem.

Igrejas da Cruzada se espalham por comunidades onde o garimpo também está presente
O garimpo também assedia as comunidades Indígenas da região. Sinésio Trovão, liderança Tikuna da Terra Indígena Betânia, a 20 quilômetros de Santo Antônio do Içá, conta que certa vez um garimpeiro da Vila Alterosa do Juí lhe ofereceu 500 mil reais para que negociasse a permanência de dragas na Terra Indígena por uma semana. “Em uma noite eles tinham tirado 2 quilos de ouro [ilegalmente] dali [de perto]”, diz. Sinésio recusou a proposta.
Construída sobre um enorme barranco que abrigara aldeias e um presídio erguido pelos portugueses durante a colonização, Santo Antônio do Içá foi fundada em 1956. Ainda vivem por lá Indígenas Tikuna, os Magüta, e também Kambeba, Kokama e Kaixana, muitos dos quais se recordam dos maus-tratos e da violência promovida pelos brancos. “Antigamente, dos anos 1940 em diante, os Indígenas apanhavam muito dos fazendeiros [grileiros] que exploravam gado e borracha aqui nessa região”, conta Sinésio. Segundo ele, Missionários dos Estados Unidos, então, vieram e tiraram os Indígenas da área onde hoje é a cidade, levando-os para as margens do Rio Içá, onde fica a Vila Betânia. Ali vivem cerca de 5 mil indígenas. Na época, os forasteiros ensinaram os Tikunas a rezar e os vestiram com as roupas dos brancos. Às 11 horas da manhã, na maloca da aldeia, no entanto, eles preservam seu idioma. Um adolescente ouve no YouTube, com o celular conectado a uma antena Starlink, a música em língua Tikuna. Sinésio organiza excursões de franceses e alemães que saem de Bogotá para passar alguns dias na aldeia.
Antigamente, corpos boiavam descendo o Içá, contam os mais velhos, como o vice-cacique Bernardino Tikuna. Hoje, o problema são os roubos de lanchas e motores de popa durante a noite. “Já roubaram seis canoas e baleeiras aqui, eles vêm de madrugada”, diz Bernardino. “Eles roubam as canoas dos Indígenas para ir buscar droga. Já roubaram muito”, acrescenta Sinésio.

Indígenas, como os Tikuna, resistem com seus rituais e sua cultura, apesar do assédio do crime organizado
Em Santo Antônio do Içá há cinco anos, o padre Carlotti, um italiano magro de olhos claros que viveu por 17 anos na Bahia, vez por outra navega pelo Rio Içá para visitar as comunidades católicas. Com uma lancha comprada pelo Vaticano, que dispõe de um equipamento sonar, ele consegue visualizar o leito do Rio. “Só dá para ver buracos”, diz, em referência ao rastro deixado pelas dragas. Durante as missas na cidade, o padre fazia discursos em prol do meio ambiente, em tom crítico aos garimpeiros. Não demorou para que lhe chegasse uma ameaça de morte. Era um recado. “O que interessa é que o Rio seja preservado de qualquer poluição que envenene as águas, os peixes e as pessoas”, diz Carlotti. A Igreja Católica distribuiu caixas-d’água ao longo do Içá para que os Ribeirinhos pudessem armazenar água da chuva, evitando o mercúrio no Rio.
O delegado da Polícia Civil de Santo Antônio do Içá, Ubiratan Farias, há pouco mais de um ano no cargo, não costuma ir até o Rio Içá. “É um ponto de abastecimento deles [garimpeiros], com apoio de parte da população”, afirma. Ele conta que teve que abortar uma missão no Içá com receio de uma emboscada. “Só vou se for com uma .50 [metralhadora] e dez homens”, diz, com uma pistola na cintura e o fuzil pendurado na parede, em seu gabinete na delegacia do município. Ele, entretanto, só pode contar com dois investigadores, dois escrivães e um estagiário, além de uma dupla de agentes federais que fica na cidade. O delegado também administra duas celas com 23 presos, além de duas presas, que, por falta de espaço, tiveram de se alojar na cozinha. Dos 1.182 boletins de ocorrência registrados desde fevereiro de 2024 no município, rota do narcotráfico, 270 são de furto. Ladrões que roubam para usar drogas, diz o delegado. Enquanto falava, ele teve de libertar um deles, flagrado com um celular roubado, por falta de espaço na carceragem. A delegacia não possui lancha própria e o presídio mais próximo fica a nove horas, em Tabatinga. Segundo o delegado, apenas cinco casos de tráfico haviam sido registrados na delegacia no último ano. As dificuldades estruturais ajudam a explicar o número baixo.
Na Base Garateia, da Polícia Federal, há uma lancha e dois agentes. “A orientação da superintendência é ‘não vai arriscar sua vida, deixa passar’ [a lancha com drogas]. Mais para a frente tem a Base Arpão”, diz um deles, em referência ao posto de vigilância da PF Rio abaixo, em Coari. Assim, os policiais se concentram em atividades de Inteligência, afirma ele.

A base da Polícia Federal se concentra em ‘atividades de Inteligência’ e o delegado da Polícia Civil só vai ao Rio Içá ‘com uma .50 [metralhadora] e dez homens’
Capítulo 4. Piratas e políticos
Numa manhã de março, por volta das 10 horas, o supermercado Içaense, que fica em uma movimentada rua de Santo Antônio do Içá, fervilhava. Do lado de fora, barracas de agricultores com Bananas, farinha e sacos de Uxi à venda. Com mais de dez fileiras de produtos abrigadas num enorme galpão, o supermercado é só mais um dos negócios do prefeito. Cecéu já era empresário, dono também da loja de materiais de construção e da lotérica da cidade, antes de se tornar prefeito. Reeleito para o segundo mandato em outubro passado, ele se iniciou na política em 2020, durante a pandemia, com um patrimônio robusto: 2 milhões de reais, incluindo quatro caminhões, duas caminhonetes, uma pá-carregadeira e um trator de esteira. Quatro anos depois, no último mês de outubro, seu patrimônio aumentou 21%, para 2,4 milhões de reais.
Cecéu foi levado à política por um padrinho: o ex-prefeito Abraão Magalhães Lasmar, um dos maiores empresários da cidade, que governou o município por dois mandatos, entre 2013 e 2020. Lasmar controla o comércio de combustíveis em Santo Antônio do Içá. O maior prédio do centro da cidade, o restaurante Diamante, pertence a ele. Mas ambos romperam. No ano passado, Lasmar perdeu a eleição municipal para o antigo aliado.
O ex-prefeito também é bem-sucedido quando o assunto é a evolução patrimonial. Em 2016, quando se elegeu para o segundo mandato, Lasmar declarou patrimônio de 444 mil reais. No ano passado, o número saltou para 1,7 milhão de reais – um aumento de 283%.
Tanto Cecéu como Lasmar são investigados em um inquérito da Polícia Federal, aberto em 2021, por suspeita de financiamento de organização criminosa, lavagem de dinheiro, ocultação de patrimônio, desvio de dinheiro público e evasão de divisas. Em 2007, um familiar de Abraão Lasmar, José Magalhães Lasmar, conhecido como “Martelo”, foi acusado pelo Ministério Público Federal de ter traficado 34 quilos de cocaína. Os procuradores descreveram Martelo como um “comerciante e proprietário de balsas em Santo Antônio do Içá, sendo transportador e um dos maiores fornecedores de cocaína do estado do Amazonas”.

Abraão Lasmar e Cecéu, o ex e o atual prefeito de Santo Antônio do Içá, são investigados pela Polícia Federal. Foto: Instagram
Procurados, nem o ex-prefeito Abraão Lasmar nem o atual prefeito de Santo Antônio do Içá, dono do supermercado, quiseram dar entrevista. José Magalhães Lasmar não foi localizado.
Em 27 de fevereiro, Santo Antônio do Içá deu uma amostra da complexidade da atuação das organizações criminosas. Uma balsa foi assaltada por piratas no Rio Solimões, na altura de Tonantins, a 32 quilômetros de Santo Antônio do Içá. Durante a ação, uma terceira embarcação apareceu disparando tiros que mataram dois tripulantes. Eram traficantes, contou um agente federal a SUMAÚMA, “que chegaram atirando” nos piratas. O envolvimento dos traficantes nesse caso ainda não é muito claro. Menos de uma semana depois, dois supostos piratas envolvidos no crime foram mortos pela Polícia Militar em Benjamin Constant e três acabaram presos. Entre os itens apreendidos, havia um drone. Os policiais suspeitam que a balsa estivesse levando combustível para um garimpo em Jutaí, perto dali. A PF analisa uma filmagem da ocorrência, que está sob investigação. “Tem muitos furos [rios estreitos]. Os piratas oferecem a escolta [para traficantes]. Mas, se não contrata a escolta, eles podem ser perigosos e tomar a carga dos outros”, afirma o delegado Ubiratan Farias.
“Os piratas colocam drones no Rio, para ver os barcos passando. Eles gostam de levar [roubar] mesmo é droga e ouro. São profissionais, fortemente armados. Nesse trecho entre Tabatinga e Tefé tem muito”, diz o chefe de máquinas da lancha, de 70 anos, quatro deles navegando pelo Rio Solimões. Ao aportar em Santo Antônio do Içá, ele fica em silêncio, antes de desabafar: “Eu trabalho com medo”.
O que diz o Exército
O Ministério da Defesa afirmou, por nota, que na região da Amazônia Ocidental, que engloba Amazonas, Acre, Rondônia e Roraima, o Exército Brasileiro, por meio do Comando Militar da Amazônia, “mantém permanente atividade de preparo e emprego de sua tropa, assegurando, assim, um estado de prontidão para empregar meios militares em proveito da garantia da soberania nacional”. Destacou ainda que o Rio Puretê fica na “área de responsabilidade da 16aBrigada de Infantaria de Selva”, com um batalhão e três pelotões especiais de fronteira.
O Exército brasileiro, responsável pelo monitoramento das fronteiras, afirmou através de nota que atua na Região Norte do país “diuturnamente por meio do Comando Militar da Amazônia e do Comando Militar do Norte, protegendo a soberania nacional e combatendo ilícitos em coordenação com outros órgãos e agências”. Explicou que as ações são dificultadas pelas “grandes dimensões e porosidade da fronteira terrestre brasileira, particularmente na Amazônia, aliadas à grande complexidade de acesso e logística de permanência”.
Ressaltou que faz uso de ações de Inteligência e de surpresa para maximizar os resultados, pois “é notório que a atuação diária em uma mesma localidade desvia o ilícito para outra desguarnecida”. A nota afirma ainda que um pelotão, um batalhão e uma brigada atuam na região e realizam uma Operação Escudo permanente, que “inclui o patrulhamento do Rio Içá e do Rio Puretê”.
Segundo o Exército, as ações de combate ao crime organizado na Fronteira Norte são coordenadas com outros órgãos e agências federais, estaduais e municipais. “No ano de 2025 a Operação Ágata Conjunta Amazônia, integrada ao Programa de Proteção Integrada de Fronteiras (PPIF), já iniciou a fase de planejamento e tem previsão de início das suas ações repressivas no mês de maio”, destacou. “Como resultados da Operação Ágata Amazônia no ano de 2024, estimou-se em 523,9 milhões de reais o prejuízo ao crime, com cerca de 3.842 ações realizadas, com apreensões de 4,20 toneladas de pasta base e 697 quilos de maconha, contribuindo para a diminuição dos crimes transnacionais.” A nota destacou ainda que a Marinha apreendeu mais de 1 tonelada de drogas durante uma patrulha no Rio Içá, em 14 de fevereiro do ano passado. E o Exército apreendeu, em Santo Antônio do Içá, 1 tonelada de maconha tipo skunk, em 27 de fevereiro de 2025.

O Rio Içá serpenteia pelas fronteiras da Colômbia com o Equador e o Peru até desaguar em Santo Antônio do Içá, na Amazônia brasileira
Esta história faz parte de um especial regional chamado “Território Narco”, liderado pela Rede Transfronteiriça do jornal peruano OjoPúblico, em colaboração com SUMAÚMA, La Silla Vacía (Colômbia) e Código Vidrio (Equador) e com apoio da Fundación para la Conservación y Desarrollo Sostenible (Peru) e do Natural Resource Governance Institute (NRGI).
Edição: Talita Bedinelli
Edição de arte: Cacao Sousa
Edição de fotografia: Lela Beltrão
Checagem: Plínio Lopes
Revisão ortográfica (português): Valquíria Della Pozza
Tradução para o espanhol: Julieta Sueldo Boedo
Tradução para o inglês: Sarah J. Johnson
Infográficos: Rodolfo Almeida
Montagem de página e acabamento: Natália Chagas
Coordenação de fluxo editorial: Viviane Zandonadi
Editora-chefa: Talita Bedinelli
Diretora de Redação: Eliane Brum